História da literatura ocidental, de autoria do austríaco Otto Maria Carpeaux (1900-1978), é uma obra monumental. Um intelectual brilhante, radicado no Brasil, aonde chegou em 1939 da Europa, Carpeaux, um judeu convertido ao catolicismo para fugir do nazismo, adotou o sobrenome afrancesado em substituição ao original Karpfen, de origem germânica. Ele discorre na obra, de forma fluente e erudita, sobre 8 mil escritores, desde Homero, na Grécia Antiga, até os autores modernos da década de 1970. Uma preciosidade de fôlego enciclopédico, sem similares no mundo, a obra, até 2011, só tinha tido três edições: uma em 1959 (Edições O Cruzeiro); outra em 1978 (Editorial Alhambra), revisada e atualizada pelo próprio Carpeaux; e a terceira em 2008 (editora do Senado). No fim do ano passado, História da literatura ocidental foi relançada pela editora Leya em quatro volumes, sendo vendidos ao preço de R$ 179,90 exclusivamente nas lojas da rede da Livraria Cultura (que coassina a edição).
Num país ainda tão pouco afeito à leitura, o relançamento de uma obra tão seminal só poderia ser digna de aplausos e elogios. Não fosse por uma questão. À exceção da capa, contracapa e das páginas iniciais, a edição da Leya (uma editora comercial de origem portuguesa) é uma cópia fiel da edição do Senado. Ela só foi possível graças a uma daquelas ações financiadas em parte com dinheiro público, bem típicas de certas rodinhas do mundo cultural. A cópia feita pela Leya é tão flagrante que até detalhes do projeto gráfico criado para os livros publicados pela editora do Senado são reproduzidos na nova edição. Uma das marcas características da coleção de livros do Senado é um pontilhado nas capas e no alto das páginas. A edição recente de História da literatura ocidental da Leya reproduz o mesmo pontilhado em suas páginas.
O projeto gráfico dos livros do Senado foi feito pelo publicitário Achilles Milan Neto. Ele venceu uma concorrência pública no fim dos anos 1990 para desenvolvê-lo e recebeu R$ 10 mil na ocasião (cerca de R$ 24 mil em valores atualizados). Milan Neto frequentou as dependências da Gráfica do Senado para adaptar suas criações às necessidades específicas e aos equipamentos de seu cliente. “Defini espaçamento, corpo da letra, entrelinhas e a capitular que seriam usados nos livros. Deixei uma espécie de apostila com orientações aos servidores do Senado”, afirmou. Ele se declarou surpreso com a reprodução de seu projeto gráfico na nova edição do livro de Carpeaux e disse que consultará advogados para saber se terá direito a receber parte dos recursos obtidos com as vendas realizadas pela Leya.
A Leya teria feito, então, um plágio descarado da edição do Senado? O problema não pode ser resumido assim. A editora portuguesa fez questão de dar os créditos do projeto gráfico do miolo do livro a Milan Neto (mesmo sem seu conhecimento), de registrar um agradecimento ao Senado pela “cessão dos direitos da obra” e de atribuir a edição ao vice-presidente do Conselho Editorial do Senado, Joaquim Campelo Marques. O próprio diretor editorial da Leya, Pascoal Soto, reconhece que houve uma cópia da edição do Senado. “Reproduzi a edição que ele (Campelo) fez. É igual. O Campelo me autorizou a fazer do jeito que eu fiz e estou orgulhoso disso”, disse Soto a ÉPOCA.
Para copiar a edição da forma como foi feita, o mais barato e rápido, para a Leya, seria simplesmente reimprimir um arquivo digital recebido do Senado. Mas Pascoal conta outra história. “O Senado não cedeu nada. Tenho a edição impressa. Temos recursos para reproduzir. Digitamos e reproduzimos tal como foi feito pelo Senado”, diz. Essa é uma versão considerada pouco verossímil pelos conhecedores dos meandros das impressões gráficas. “Seria um trabalho gigantesco para a Leya digitalizar as imagens para pôr no mesmo formato da edição do Senado”, diz o editor José Mário Pereira, dono da editora Topbooks.
A história da cópia da edição da História da literatura ocidental poderia se limitar a uma trapalhada nota de rodapé, mal contada por seus autores, não fosse a proximidade da Leya com o presidente do Senado e do Conselho Editorial, José Sarney (PMDB-AP), e o vice-presidente do Conselho, Joaquim Campelo. A biografia autorizada de Sarney, escrita pela jornalista Regina Echeverria, que traça um retrato simpático do político do Maranhão, foi publicada pela Leya. Na semana passada, Sarney também entregou à editora seu livro de memórias, que deverá ser publicada no segundo semestre deste ano. A Leya, segundo confirmou Pascoal Soto, também examina a possibilidade de publicar um dicionário de autoria de Campelo.
Maranhense da cidade de Viana, Campelo, de 80 anos, é amigo de Sarney desde a década de 1940, quando estudaram no mesmo colégio. Campelo foi amigo de Carpeaux, ajudou a revisar a edição de sua obra pela Alhambra em 1978 e ganhou fama ao auxiliar Aurélio Buarque de Holanda na elaboração do dicionário mais conhecido do Brasil. Casado com Margarida Patriota e cunhado do ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, Campelo assessora Sarney desde a Presidência da República, no fim dos anos 1980. Ele era responsável por preparar discursos para o então presidente e por ler documentos importantes antes da assinatura presidencial. Como vice-presidente do Conselho Editorial do Senado, comanda a editora do Senado. Foi ele quem negociou com Soto a edição recente de História da literatura ocidental.
A suspeita de que a Leya foi favorecida é reforçada porque havia editoras concorrentes interessadas na reedição da obra de Carpeaux. José Mário Pereira, da Topbooks, disse que prepara a edição de História da literatura ocidental há alguns anos e foi surpreendido com o relançamento da Leya. “Estimo gastar entre R$ 60 mil e R$ 70 mil com os três volumes que vamos lançar. Esse é aproximadamente o montante economizado pela Leya quando o Senado cedeu os direitos da obra à editora”, diz Pereira. “O Senado ajudou uma editora estrangeira. Por que escolheu ela?” No cálculo feito por Pereira, estão as previsões de despesas com pesquisas, revisões e digitalizações.
Tanto Sarney como Campelo defendem-se e dizem que não houve nem favorecimento à Leya nem cessão de direitos de História da literatura ocidental, uma vez que se trata de uma obra de domínio público. Uma obra torna-se de domínio público 70 anos após a morte de seu autor ou quando o autor não deixa herdeiros, caso de Carpeaux. Mas há aí também uma confusão. Segundo a advogada especializada em direitos autorais Sônia Maria D’Elboux, ainda que uma obra seja de domínio público, uma editora que se utiliza da criação intelectual de outra, constituída pela seleção, organização ou disposição desse conteúdo estará violando direitos autorais. “Para que haja proteção autoral, exigem-se criatividade e originalidade”, diz Sônia.
Para o público interessado em literatura, o relançamento da obra de Carpeaux trouxe um duplo benefício. Além de tornar o livro mais acessível a novos leitores, a reedição permitiu uma redução do preço pago pelos quatro volumes. Até o final do ano passado, a História da literatura ocidental, editada pelo Senado, só podia ser comprada pela internet ao preço de R$ 200. Alertado de que a Livraria Cultura vende os quatro volumes a R$ 179,90, o Senado, na semana passada, resolveu baixar seu preço para R$ 170.