Aos pés da serra da Cantareira, no bairro paulistano do Tremembé,
roupas da Lojas Renner eram fabricadas por trabalhadores bolivianos em
regime análogo ao escravo. Em 11 de novembro, a fábrica foi interditada
pelo Ministério do Trabalho e 37 funcionários foram resgatados, dentre
eles 36 adultos (21 homens e 15 mulheres) e um adolescente de 16 anos.
Havia 35 mil peças da Renner, das marcas Cortelle, Just Be, Blue Steel e
Blue Steel Urban.
Apesar de terem registro em carteira, os trabalhadores viviam
em alojamentos em condições degradantes, tinham descontos indevidos nos
salários, trabalhavam em jornadas exaustivas, eram remunerados por
produção e sofriam violência psicológica, verbal e física.
Identificou-se ainda o crime de tráfico de seres humanos para fins de
exploração laboral. A Renner poderá ser incluída na lista suja do
trabalho escravo.
A oficina prestava serviços às confecções Kabriolli e Betilha. As
duas intermediárias e a oficina possuem certificação de boas práticas
nas relações de trabalho da Associação Brasileira do Varejo Têxtil,
expedida pela empresa de auditoria Bureau Veritas. Na quarta-feira 26, a
Renner recebeu 30 autuações referentes a cada problema identificado, o
que a responsabiliza a pagar 930 mil reais aos trabalhadores por danos
morais e dívidas trabalhistas acumuladas desde junho de 2013, período em
que foi verificada a produção da oficina para a varejista.
Representantes da Renner não compareceram, porém, à assinatura do Termo
de Ajuste de Conduta, firmado apenas pelas duas fornecedoras, que
assumiram emergencialmente o pagamento.
A Renner será multada em até 2 milhões de reais pelo ministério por
infração administrativa. Outra multa por dano moral coletivo será
estabelecida pelo Ministério Público do Trabalho. Os trabalhadores
receberão três meses de seguro desemprego.
O boliviano M. S. produzia 26 vestimentas da Renner por hora.
Em 2013, um cronômetro ao lado da máquina de costura controlava o ritmo
de produção. Se a meta não fosse atingida, o valor era descontado do
salário de 1,082 mil reais. Também eram abatidos valores de emissão de
documentos, multas por não cumprimento de tarefas como lavar banheiros,
pagamentos de creche e custos por materiais de trabalho quebrados.
Alguns trabalhadores ficavam com saldos negativos, o que configura
servidão por dívida.
Cada peça rendia 85 centavos de real ao costureiro. O marcador de
tempo foi substituído neste ano pelo controle por peça produzida, o que
estendia o expediente a largas horas. Trabalhava das 7 da manhã às 9 da
noite e nos fins de semana. Um registro de ponto na parede servia apenas
para fraudar a fiscalização.
Tímido, M.S. conta ter chegado ao
Brasil em 2012 na esperança de uma vida melhor e dinheiro para enviar a
familiares na Bolívia. Porém, o que ganha mal dá para sobreviver com a
esposa, também costureira, e o filho de 1 ano e meio. O dinheiro que
restava depois dos descontos era retido pela oficina, prática induzida
pelo empregador, sob a alegação de segurança. O pagamento era feito por
vales de acordo com a necessidade de gastos do funcionário. Caso
quisessem deixar a empresa, não conseguiam reaver os valores retidos e a
oficina proibia desligamento antes de dois anos de trabalho.
No alojamento de três andares onde viviam cerca de 20 bolivianos,
cada família com crianças ocupava um cômodo, alguns separados por
divisórias de madeira. Beliches, guarda-roupas e televisões compunham o
ambiente mofado e com cortinas no lugar das portas. Botijões de gás
estavam em locais de risco com pouca circulação de ar. Na cozinha
coletiva, pequenas baratas andavam perto das comidas. Ratoeiras
denunciavam a presença de roedores no local. “Submeter os trabalhadores a
essas condições representa desrespeito à dignidade da pessoa humana”,
lê-se no relatório dos fiscais. Certo dia, os trabalhadores reclamaram
da qualidade da comida, que por vezes vinha com baratas e cabelos. No
dia seguinte, não foi servido o almoço, nem havia mantimentos no
alojamento para cozinhar.
Os relatos sobre os abusos só surgiram depois do resgate. No dia da
fiscalização, os trabalhadores repetiam as mesmas informações de que
pagavam o aluguel da moradia e trabalhavam oito horas por dia. Os
empregadores diziam aos funcionários que as horas adicionais sem
remuneração serviam para cobrir as despesas com o alojamento e a comida.
Se quisessem morar em outro lugar, receberiam apenas 10 centavos de
real a mais por peça produzida. Ao fim de dois anos de trabalho, mentiam
os contratantes sobre os valores descontados para o INSS, que em vez de
recolhidos eram retidos, seriam devolvidos aos costureiros.
A escravidão moderna escora-se na vulnerabilidade das vítimas, muitas
vezes imigrantes que desconhecem as leis do país onde vão trabalhar.
Por isso, muitas vezes torna-se uma relação consentida. “Eles ficam
presos a correntes invisíveis e a libertação consiste em explicar que o
acordo fechado com o empregador não está correto”, explica o auditor
fiscal do trabalho Luis Alexandre de Faria. Há medo de deportação,
apesar da vigência do acordo de livre circulação do Brasil com o
Mercosul, Bolívia e Chile, que permite aos habitantes desses países
solicitarem permanência no outro com garantia de todos os direitos
civis, incluindo trabalhistas.
Para o Ministério do Trabalho, a jornada exaustiva imposta na oficina
é diretamente relacionada ao baixo valor pago pela Renner e aos prazos
de entrega impostos. A pulverização de fornecedores, o chamado sweatshops,
comum no setor têxtil, serviria justamente para reduzir custos com a
precarização do serviço. Apenas a mão de obra de maior expertise,
responsável pela criação dos produtos e pelo controle de qualidade, é
contratada direta das grifes. A Lojas Renner, signatária do Pacto de
Erradicação do Trabalho Escravo e Pacto Global em 2013, respondeu não
compactuar e disse repudiar a utilização de mão de obra irregular em
qualquer etapa de produção. Segundo a varejista, o processo de auditoria
e certificação de fornecedores será revisado.
Documentos obtidos pela fiscalização mostram que a Renner calcula os
custos do fornecedor e determina o preço pago por peça. Uma eventual
negociação de preço exigiria do fornecedor o detalhamento de cada
variável de custo e sua margem de lucro. Ou seja, as grifes sabem qual o
nível de subcontratação de oficinas de cada confecção. O ministério
verificou que os mesmos fornecedores atuam de forma diferenciada, com
costureiras próprias, quando o varejista exige e paga um preço melhor.
Diante das denúncias de uso de trabalho escravo, os grandes magazines
passaram a auditar os fornecedores. Uma certificação de boas práticas
foi lançada em 2010 e 7 mil empresas receberam o selo. O resultado da
primeira auditoria realizada pela Renner, em 2013, foi a redução de
fornecedores locais, de 636 para 551, e o aumento das importações.
As indústrias têxteis brasileiras acusam as confecções estrangeiras,
principalmente as da Ásia, onde as leis trabalhistas são menos exigentes
e pouco se fiscaliza, de dumping social. “É preciso exigir que todos os
países sigam um padrão de leis trabalhistas, pois, se o comércio é
global, os meios de produção também precisam ser”, afirma Rafael
Cervone, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de
Confecção. O alerta foi levado pelos empresários à Organização
Internacional do Trabalho na 103ª Conferência, em Genebra, em junho
deste ano. Segundo o Ministério Público, uma oficina com 20
trabalhadores explorados das formas encontradas nas fiscalizações pode
obter uma vantagem competitiva mensal de 20 mil dólares em relação ao
empresário cumpridor da legislação.
O caso Renner indica mais uma vez que cabe às grandes grifes, maiores
clientes de confecções no mundo inteiro, ir além das certificações,
hoje burladas, e assumir uma remuneração pelo serviço que permita a
sobrevivência de empresas seguidoras da lei.