Por Patrícia Bonilha, de Brasília (DF)
Os
dados do relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil
referentes a 2013 evidenciam que a política indigenista em curso no país
é omissa no que tange ao cumprimento das diversas obrigações
constitucionais e da efetivação dos direitos indígenas. A total
paralisação dos processos de demarcação de terras indígenas, os altos
índices de mortalidade infantil, suicídio, assassinato, racismo e de
desassistência nas áreas de saúde e educação indicam uma atitude de
extremo descaso do governo em relação às populações indígenas. Na
publicação, organizada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a
falta de empenho e vontade política na proteção e promoção dos direitos
desses povos fica evidente também em uma análise dos dados do Orçamento
Geral da União de 2013.
Um
dos mais explícitos indícios da omissão governamental foi a total
paralisação das demarcações de terras indígenas no ano passado, que teve
um reflexo direto no acirramento dos conflitos nas aldeias em todo o
país. Apesar de uma homologação ter sido assinada, nenhum procedimento
demarcatório foi concluído em 2013. Desse modo, a média anual de terras
demarcadas da presidenta da República Dilma Rousseff diminuiu para 3,6, a
pior média desde o fim da ditadura militar, consolidando-a como a chefe
de Estado que menos demarcou terras indígenas na história recente do
país.
De
acordo com os dados do relatório, das 1.047 terras indígenas
reivindicadas pelos povos atualmente, apenas 38% estão regularizadas.
Cerca de 30% das terras estão em processo de regularização e 32% sequer
tiveram iniciado o procedimento de demarcação por parte do Estado
brasileiro. Das terras indígenas regularizadas, em termos de extensão
territorial, 98,75% se encontram na Amazônia Legal. Enquanto isso,
554.081 dos 896.917 indígenas existentes no Brasil, segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, vivem nas outras
regiões do país, que têm apenas 1,25% da extensão das terras indígenas
regularizadas.
Existem
30 processos de demarcação de áreas já identificadas pela Fundação
Nacional do Índio (Funai) como terras indígenas tradicionais que não têm
nenhum impedimento administrativo ou litígio judicial. Ou seja, não há
nenhuma pendência ou obstáculo para a efetivação da demarcação dessas
terras. Desses 30 processos, 12 dependem somente da assinatura da
Portaria Declaratória pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, 17
terras indígenas aguardam a homologação pela presidenta da República,
Dilma Rousseff, e um processo aguarda a expedição do Decreto de
Desapropriação, também pela presidenta Dilma. Outros cinco processos
estão na mesa da presidenta da Funai, Maria Augusta Assirati, aguardando
apenas a assinatura de aprovação do Relatório Circunstanciado de
Identificação e Delimitação. Estes dados evidenciam ainda que a proposta
de realizar Mesas de Diálogo como forma de resolver a morosidade dos
processos de demarcação e os conflitos fundiários foi totalmente
fracassada.
De
acordo com a Constituição Federal, todas as terras indígenas deveriam
ter sido demarcadas até 1993. No entanto, os compromissos assumidos com
os setores vinculados ao agronegócio, às empreiteiras, mineradoras e
empresas de energia hidrelétrica impossibilitam o governo de cumprir
suas obrigações constitucionais. Os interesses privados destes grupos
encontram ressonância na política desenvolvimentista praticada pelo
governo e também em seus interesses eleitoreiros. “Como é de
conhecimento público, estes setores são justamente os inimigos
históricos dos povos indígenas e os principais responsáveis pelos
massacres, etnocídios e espoliações dos territórios destes povos, além
de outros tipos de violência”, evidencia Cleber Buzatto, secretário
executivo do Cimi.
Também
não é pela falta de recursos financeiros que as demarcações não foram
realizadas. Nos desdobramentos do programa Fiscalização e Demarcação de
Terras Indígenas, Localização e Proteção de Índios Isolados e de Recente
Contato existe uma ação denominada “Delimitação, Demarcação e
Regularização de Terras Indígenas”, cuja dotação orçamentária em 2013
foi de R$ 21,642 milhões. No entanto, foram liquidados apenas R$ 5,4
milhões (ou 24,96% do montante). “Observa-se, portanto, que muitos
outros procedimentos administrativos poderiam ter sido conduzidos com os
76,04% dos recursos que deixaram de ser aplicados. Portanto, as razões
para a não demarcação são vinculadas ao plano político e aos projetos de
desenvolvimento do país, nos quais os povos indígenas têm sido
considerados irrelevantes e desnecessários”, afirma Iara Bonin, em sua
análise sobre a execução orçamentária.
Apesar
do orçamento para a assistência em saúde indígena, segundo a Secretaria
Especial de Saúde Indígena (Sesai), ter quadruplicado nos últimos
quatro anos, ela continuou marcada por uma absoluta omissão na
implementação de ações – algumas bastante básicas – que poderiam salvar
milhares de vidas anualmente. Um exemplo devastador dessa omissão é o
índice de mortalidade infantil em 2013. Dados da Sesai informam que
morreram 693 crianças de 0 a 5 anos entre os meses de janeiro e
novembro. O caso mais impressionante é o do Distrito Sanitário Especial
Indígena (Dsei) Yanomami, em Roraima, com 124 mortes. Enquanto a Sesai
relata que nesse mesmo período ocorreram 17 mortes de crianças menores
de 5 anos no Mato Grosso do Sul, dados mais recentes do Dsei, de abril
de 2014, apresentam um total de 90 óbitos de crianças menores de 5 anos
somente neste estado, entre os meses de janeiro a dezembro. Ainda de
acordo com o Dsei/MS, o coeficiente de mortalidade infantil de menores
de 5 anos é de 45,9 para cada 1.000 indígenas nascidos, mais que o dobro
da média nacional em 2013, que é de 19,6 segundo o IBGE, variando de
acordo com as regiões.
Novamente,
verifica-se que o problema não está relacionado à falta de recursos.
Para o programa Saneamento Básico em Aldeias Indígenas para Prevenção e
Controle de Agravos foi autorizada a execução de R$ 27,7 milhões, mas o
governo utilizou irrisórios 1,39%, deixando de aplicar, portanto, RS
27,3 milhões. A utilização destes recursos para a construção de poços
artesianos em várias regiões brasileiras certamente diminuiria o índice
de doenças e agravos que vitimizam especialmente as crianças, como a
diarreia. “Apesar de todas as denúncias apresentadas pelo movimento
indígena e por entidades indigenistas, além de ações judiciais
impetradas pelo Ministério Público Federal (MPF), o governo federal
mantém-se insensível frente às mortes causadas por doenças facilmente
tratáveis”, considera Roberto Liebgott, representante do Cimi na
Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (Cisi).
O
Mato Grosso do Sul continua sendo o estado que mais viola os direitos
indígenas. Em 2013 foram registradas no estado 33 vítimas de
assassinatos (62% do total no país), 16 casos de tentativas de
assassinatos (de um total de 29 no país) e, segundo a Sesai, 73 vítimas
de suicídios. Este índice configura-se como o maior em 28 anos, de
acordo com os registros do Cimi. Dos 73 indígenas que se suicidaram, 72
eram do povo Guarani-Kaiowá, a maioria com idade entre 15 e 30 anos.
Do
total de 33 assassinatos no estado, 31 ocorreram entre indígenas do
povo Guarani-Kaiowá e dois casos do povo Terena. Nos últimos 11 anos, os
levantamentos do Cimi mostram que pelo menos 616 indígenas foram
assassinados no país, sendo que 349 destas mortes ocorreram no Mato
Grosso do Sul, onde a maioria das comunidades vive em situação de
extrema precariedade, em acampamentos improvisados nas margens das
rodovias, nas áreas de preservação obrigatória – faixa de domínio –
dentro das fazendas, ou confinados em pequenas reservas criadas pelo
Serviço de Proteção aos Índios (SPI), no início do século passado. A
Reserva Indígena de Dourados, por exemplo, apresenta a maior densidade
populacional entre todas as comunidades tradicionais do país, abrigando
mais de 13 mil indígenas em 3,6 hectares de terra. Nela aconteceram 18
dos 73 casos de suicídio no estado em 2013.
Também
foi frequente em 2013 a difusão de discursos com teor preconceituoso e
racista em meios digitais de informação, jornais, televisão e rádio. Com
o registro de 23 ocorrências, estes casos mais que dobraram em relação a
2012, quando 11 registros foram feitos. Os polêmicos vídeos dos
deputados federais Luis Carlos Heinze (PP-RS) e Alceu Moreira (PMDB-RS)
inserem-se nesses casos de racismo e incitação à violência contra os
povos indígenas. “Em 2013, o crime de racismo manifestou-se de
diferentes formas contra os povos indígenas: no impedimento de usarem o
transporte coletivo ou de estudantes frequentarem a escola; na não
contratação, mesmo que para subempregos; nas inúmeras agressões e
ofensas verbais; no não reconhecimento da sua condição de indígena; na
impossibilidade de acesso a benefícios sociais; na recusa de receberem
atendimento médico; na obrigação de crianças indígenas lavarem banheiros
nas escolas e no recebimento de merenda menor que as crianças não
indígenas; e na condenação por crimes, mesmo sem provas substanciais,
como foi o caso que envolveu o povo Tenharim, no Amazonas”, resume a
antropóloga Lúcia Rangel, coordenadora da pesquisa do relatório.
Em
relação a este episódio, Egydio Schwade, ex-secretário executivo do
Cimi e profundo conhecedor da Amazônia, afirma em seu artigo que as
agressões ao povo Tenharim são bastante antigas e a sua motivação sempre
foi de ordem econômica espoliadora. “Nesse sentido, não se avista
nenhuma justiça para os povos indígenas da região no curto prazo. Nenhum
relatório conclusivo que vá ao encontro da justiça. Ao contrário, os
inquéritos policiais acabam levando a um e mesmo beco sem saída justa,
porque a ‘justiça’ já foi previamente programada para a condenação de
inocentes, dos índios ‘no plural’, como ‘bodes expiatórios’. Tudo para
proteger os interesses em jogo dos madeireiros, mineradores, fazendeiros
e agronegociantes”, conclui Schwade.
Clique aqui para download do Relatório http://cimi.org.br/ pub/RelatorioViolencia_dados_ 2013.pdf