Brasília - A escalada de conflitos que envolvem índios no país desnudou o racismo
dos brasileiros contra seus povos nativos, diz Sônia Guajajara, uma das
maiores líderes do movimento indígena nacional. "Até uns dez anos atrás,
negavam nossa presença, faziam de conta que não existíamos. O racismo
estava escondido", afirma Guajajara, coordenadora executiva da
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). "Hoje o preconceito é
muito mais visível e declarado".
Em entrevista à BBC Brasil no fim de maio, quando esteve em Brasília ao
lado de outros 500 índios para protestar, ela atribui o acirramento das
tensões no campo à suspensão das demarcações de Terras Indígenas pelo
governo federal.
Segundo a líder, integrante do povo guajajara, do Maranhão, o governo
paralisou as demarcações para não desagradar políticos ligados ao
agronegócio e buscar o apoio deles à reeleição da presidente Dilma
Rousseff.
Guajajara, de 40 anos, diz ainda que Dilma desconhece os índios
brasileiros e ignora suas aspirações. "Ela pensa que, para ficarmos bem,
precisamos ter bens, chuveiro quente, casa de alvenaria". "Nossa lógica
e nosso modo de vida são outros: qualidade de vida para nós é
liberdade, e liberdade é ter nossos territórios livres de ameaças e
invasões para produzir sem destruir, como fazemos milenarmente."
Procurados, o Ministério da Justiça e a Presidência não se pronunciaram
sobre as críticas de Guajajara. Leia os principais trechos da
entrevista.
BBC Brasil - A relação dos índios com o governo federal piorou?
Sonia Guajajara - Piorou bastante, e o desgaste tem
ocorrido por conta da omissão do ministro da Justiça [José Eduardo
Cardozo] em relação à questão de demarcação de terras. Os conflitos no
campo se acirraram, e ele simplesmente suspendeu todos os processos de
demarcação em curso.
A Dilma demarcou apenas dez terras em quatro anos de mandato, o pior
resultado para um governo desde que nossas terras começaram a ser
demarcadas. Há 12 processos de demarcação na mesa do ministro Cardozo
que dependem somente da assinatura dele. Esses processos já estão
concluídos e não envolvem conflito nenhum. Mesmo assim, ele não assina.
Eles não querem perder o apoio da bancada ruralista para a eleição da
Dilma.
BBC Brasil - O ministro diz que os processos foram paralisados para evitar conflitos e que as soluções devem ser negociadas.
Guajajara - Todas as medidas do governo para tentar
resolver agravaram os conflitos. Quando em 2012 saiu a portaria 303 da
Advocacia Geral da União [que define a posição do órgão federal quanto à
demarcação de terras e, entre outros pontos polêmicos, admite obras
nessas áreas se houver "relevante interesse público da União"], grandes
fazendeiros voltaram a áreas que haviam sido retomadas por indígenas, e
só na Bahia índios instalaram 64 acampamentos de retomada de terra.
Temos a sensação de que as mesas de diálogo não são para resolver. Como
se pode fazer diálogo se apenas uma das partes tem de ceder sempre? Não
são mesas de diálogo, mas de imposição.
BBC Brasil - O governo e associações rurais dizem que várias
das terras reclamadas pelos índios hoje não são ocupadas por grandes
fazendeiros, mas sim por pequenos agricultores, que têm os títulos
dessas áreas.
Guajajara - Nosso problema não é com o pequeno
agricultor. Em quase todas as áreas a serem livradas de intrusos ou
devolvidas a indígenas, os pequenos agricultores aceitam sair se
receberem indenização. Quem está lutando contra isso e pressionando são
os grandes. E o governo não está a fim de pagar, por isso fica se
escondendo atrás desse argumento falso.
BBC Brasil - O clima ruim com o governo se deve somente à atuação do ministro da Justiça?
Guajajara - O ministro da Justiça obedece ordens
superiores. A Dilma não está nem aí para nós. Para ela, nem existe índio
no Brasil. O interesse dela é o avanço da economia e o desenvolvimento,
não importa quem estiver no meio.
Durante todo o governo fomos recebidos uma só vez por ela, em junho de
2013, durante as manifestações. Foi até muito simpática, prometeu que
nenhum ato de governo seria implantado em Terras Indígenas sem nos
ouvir.
Mas o que vemos é o avanço das hidrelétricas e as obras do PAC
ocorrendo sem qualquer consulta. Na região do Tapajós [no Pará], quando
os munduruku resistiram à construção das hidrelétricas que estão
planejadas lá, a presidente publicou o decreto 7957 [que regulamenta o
emprego de forças federais em conflitos ambientais]. O decreto permite a
entrada da Força Nacional nas Terras Indígenas para facilitar estudos
ambientais, mas a presença dela acaba inibindo manifestações.
BBC Brasil - Há espaço para os índios no modelo de desenvolvimento pregado pelo governo?
Guajajara - A Dilma acha que temos que comprar,
consumir e fazer cooperativas para ter dinheiro. Ela pensa que, para
ficarmos bem, ter qualidade de vida, precisamos ter bens, chuveiro
quente, casa de alvenaria.
Nas grandes obras, às vezes oferecem às comunidades algum dinheiro,
achando que vão resolver os problemas. Mas para o indígena o dinheiro
acaba sendo um ponto de conflito, porque não temos o costume de lidar
com ele. Não temos essa coisa de acumular riquezas.
Nossa lógica e nosso modo de vida são outros. O que a maioria dos
indígenas nas aldeias quer é tranquilidade. Qualidade de vida para nós é
liberdade, e liberdade é ter nossos territórios livres de ameaças e
invasões para produzir sem destruir, como fazemos milenarmente.
BBC Brasil - Quem o movimento indígena vai apoiar nas eleições?
Guajajara - Estamos numa sinuca de bico. O governo
Dilma foi muito ruim para nós, e não há nada que possa mudar nossa
revolta, inclusive contra o PT. Mas outro governo de direita do PSDB
seria muito ruim também. O Eduardo Campos, apesar de aliado com a Marina
Silva, não sabe nem o que são povos indígenas. A Marina acabou se
enrolando bastante. É um cenário político muito ruim, que não apresenta
nenhuma perspectiva para nós.
BBC Brasil - Quais os temas mais urgentes para os índios hoje?
Guajajara - Tudo é relacionado à terra. Na Amazônia, a
demarcação avançou bastante, mesmo assim praticamente todas as Terras
Indígenas sofrem a exploração ilegal de recursos naturais.
Em outras áreas os índios ficaram quase sem terra nenhuma. Em Mato
Grosso do Sul, a questão é mais urgente por conta da violência. Os
pistoleiros entram nas aldeias, e morre gente todo dia. Em São Paulo,
tem uma área, a Terra Indígena Jaraguá, em que 600 índios vivem em pouco
mais de um hectare!
No Sul, os indígenas também estão sem terras e há mais de 60
acampamentos à beira da estrada. Quando eles resolvem fazer retomada e
lutar pelo direito territorial, são presos.
E tem a situação no Nordeste, onde, além da criminalização e falta de
terras, os indígenas têm que lutar pelo seu reconhecimento enquanto
etnias, enquanto povos. Lá se acirrou muito o preconceito dos que acham
que não é índio quem não tem as características físicas associadas aos
indígenas. Sabemos que a violência do processo de colonização, que teve
abusos de todos os tipos, inclusive sexual, mudou muito as
características desses povos. É uma situação que demonstra o preconceito
no Brasil contra os indígenas.
BBC Brasil - O preconceito tem aumentado?
Guajajara - Ao mesmo tempo que aumentou bastante o
número de brasileiros que se autodeclaram indígenas, aumentou muito mais
ainda o preconceito e o racismo. Até uns dez anos atrás, negavam a
nossa presença, faziam de conta que não existíamos. O racismo estava
escondido. Hoje o preconceito é muito mais visível e declarado.
Teve aquele caso no sul do Amazonas, onde população da cidade de
Humaitá se revoltou com os índios, tacando fogo nas aldeias e nos
prédios públicos que cuidam das questões indígenas [os ataques ocorreram
em dezembro de 2013 após a morte de três moradores que sumiram enquanto
cruzavam uma área da etnia tenharim; desde então, seis índios foram
presos e acusados pelas mortes, mas negam o crime].
BBC Brasil - Tem havido no Brasil um forte avanço das políticas
afirmativas, especialmente em favor dos negros, como as cotas em
universidades e em concursos públicos. Os índios, porém, parecem ainda
não ter conquistado o mesmo espaço nessas políticas e nas instituições
do Estado. Por quê?
Guajajara - De fato tem avançado bastante a inserção
do negro na universidade, inclusive em ministérios e no Parlamento. Mas
isso não quer dizer que a situação deles melhorou lá na ponta. Veja a
situação dos quilombos. Eles têm as mesmas dificuldades que nós. Temos a
preocupação de não ter representantes só por ter. Queremos indígenas
nos espaços de decisão, mas com autonomia.
Fonte: Uol Notícias
BNC