“Não
pedimos que gostem dos índios. Exigimos apenas que nos respeitem. Que
respeitem nossos direitos”. E a violação desses direitos, trazida pela
fala de Ivanildo Tenharim diante das agressões sofridas pelo seu povo, é
uma das principais causas dos dados apresentados pelo relatório de
violências contra os povos indígenas, referente ao ano de 2013, do
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), lançado nesta quinta-feira, 17,
na sede da CNBB, em Brasília.
(CIMI)
Parte das análises do relatório, a omissão do Poder Público recebeu
destaque. Na questão indígena, a omissão é o principal combustível da
violação. Nesta quinta, a Funai declarou para a Agência Brasil que por
orientação do governo federal paralisou os processos de demarcação em
áreas de conflito. Com efeito, são nestas terras indígenas que está a
maior concentração de violências e agressões contra os povos, conforme
atesta o relatório. No lugar de demarcar as terras, assentar os pequenos
agricultores e pagar as benfeitorias, a decisão do governo é a de não
contrariar os aliados ruralistas.
O presidente do Cimi, Dom Erwin Kräutler, acredita que “o governo
federal se nega a cumprir suas obrigações constitucionais de assegurar
as terras indígenas. Com o relatório visamos uma ampla e intensa
campanha de luta em defesa da vida. Precisamos urgentemente rever as
prioridades sociais e direção política de nosso país. Não podemos nos
calar diante do que ocorre com estes povos, que querem viver”.
Viver. Como povos indígenas podem viver sem ocupar de forma plena suas
terras tradicionais? A paralisação dos procedimentos demarcatórios como
parte da política indigenista estatal, deixando 64% das terras indígenas
sem regularização, mantém comunidades confinadas ou acampadas às
margens de rodovias e vulneráveis às violências de fazendeiros,
madeireiros, grandes empreendimentos. Para muitos indígenas a teia de
dissociações fiadas não deixa outro caminho fora o suicídio, alcoolismo e
a violência entre si.
No Mato Grosso do Sul, conforme o relatório, ocorreram 73 suicídios em
2013, sendo 72 entre os Guarani Kaiowá. O pior resultado em 28 anos. Já o
município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, majoritariamente de
população oriunda de 23 povos indígenas da região do rio Negro, lidera o
ranking de suicídios entre os mais de 5 mil municípios, conforme o Mapa
da Violência 2014, com taxa de 50 por 100 mil habitantes - dez vezes
maior que a média nacional.
Racismo e incitação ao ódio
“O relatório 2013 traz de forma muito forte a postura anti-indígena de
setores da sociedade brasileira. Os ruralistas promoveram
manifestações, leilões e no parlamento tentam aprovar projetos contra
estas populações. Isso tem um efeito direto nas formas de violências
contra os povos indígenas”, aponta a coordenadora do relatório, a
antropóloga Lucia Helena Rangel. Assessora do Cimi, Lucia destaca o que
chama de “liberdade de expressão” contumaz dos detratores das lutas
indígenas com ataques racistas, pejorativos e de incitação ao ódio.
A antropóloga lembrou da audiência pública da Comissão de Agricultura
da Câmara Federal, ocorrida no município de Vicente Dutra (RS) em
novembro do ano passado, onde os deputados Luiz Carlos Heinze (PP/RS) e
Alceu Moreira (PMDB/RS) fizeram ataques agressivos não só contra
indígenas, mas também envolvendo negros e homossexuais taxando-os de
“tudo o que não presta”. A audiência foi financiada com recursos
públicos. Mesmo longe de ser algo novo no país, tais ataques surpreendem
pelo respaldo político que encontram no Executivo e Legislativo. O
missionário indigenista Roberto Liebgott, também coordenador do
relatório, analisa que a postura omissa do governo federal diante da
efetivação do direito ao território tradicional desencadeou uma onda de
violência contra os indígenas em diversos campos da sociedade, caso do
legislativo. “A conexão se dá pelo governo federal, que possui uma
dependência política dos ruralistas, e então juntos eles harmoniosamente
agem contra os direitos indígenas”, afirma Liebgott.
Num contexto desfavorável, onde a cada 100 indígenas que morrem 40 são
crianças, comprometendo assim até mesmo o futuro destes grupos, os povos
seguem resilientes. Sobretudo com a nova tática de criminalização, que
conta com prisões e imputação de crimes sobre os ombros calejados de
lideranças, caciques e pajés. E não é mera coincidência que tenham
ocorrido prisões e acusações em áreas de conflito, seja motivado pelos
interesses do agronegócio, do próprio governo e seus empreendimentos ou
pela ação ilegal de madeireiras. Mesmo quando se trata de terras
demarcadas. O caso emblemático de 2013 foi o ocorrido com os Tenharim,
entre os municípios de Humaitá e Manicoré, no Amazonas. Para o relatório
de 2014 já existem outras duas situações: os cinco Kaingang presos no
Rio Grande do Sul e Babau Tupinambá detido em Brasília. Acusados de
crimes que não cometeram, provas inconsistentes ou inexistentes. Um
padrão.
Caso Tenharim
No caso dos tenharim, cinco lideranças foram presas acusadas de
assassinar, em dezembro do ano passado, três homens. Sem nenhuma prova
de que tivessem cometido o crime, e negando de forma contundente, foram
execradas e condenadas pela imprensa e hoje os tenharim não podem
circular pelas cidades sob risco de espancamento. As crianças estão
proibidas de frequentar a escola, os professores de lecionar e os
indígenas servidores públicos não podem mais se dirigir aos postos de
trabalho. “A Justiça age contra a gente, mas não contra madeireiros e
demais invasores. Nenhuma denúncia que fazemos tem providência. Isso
acontece no Brasil inteiro”, destaca Ivanildo Tenharim.
A liderança explica que com a abertura da Rodovia Transamazônica pela
ditadura militar, nos anos 1970, chegaram os fazendeiros e madeireiros.
Parte do povo foi escravizado pelas frentes de colonização. Outra parte
morreu assassinada ou em decorrência da invasão. Assim nasceu o
conflito. Dezenas de madeireiras se instalaram e prosperaram. Neste
início de século XXI, a única área da região que mantém a floresta
preservada está na terra indígena. Os madeireiros então passaram a
invadir e retirar madeira do território tradicional com cerca de 1
milhão de hectares. Os tenharim reagiram.
“Montamos os pedágios, a partir de 2006, como forma de compensar. Os
recursos financiavam nossa luta contra as madeireiras. Nunca aceitaram e
faz tempo que buscavam um motivo para nos atacar. Com a morte dos três
passaram a nos acusar. Fecharam a estrada, atacaram a aldeia, a Funai,
queimaram o barco. Todo mundo ficou contra a gente. Quem estava na
cidade teve de ficar no quartel do Exército”, conta Ivanildo. O povo
segue ameaçado e perseguido. A prisão das cinco lideranças mudou a
rotina da aldeia e a liderança tenharim afirma que estão desamparados.
“Fosse apenas fazendeiro e madeireiro, tudo bem. O problema é que tem o
Poder Público no meio, a Polícia Federal. Quando vamos fazer queixa de
ameaça na delegacia, dizem que o sistema está fora do ar. Tudo isso está
relacionado com os interesses de madeireiros, fazendeiros e do próprio
governo que tem projeto para aquela região”, critica o tenharim olhando a
capa do relatório, com o barco do povo pegando fogo depois de atacado
com bombas incendiárias pela horda arregimentada por setores
anti-indígenas da região.
Ao comentar o relatório, dom Leonardo Steiner, secretário geral da
CNBB, se deteve ao poder simbólico da imagem: “É uma capa muito
significativa: estamos queimando culturas. Creio que não há dimensões do
quanto isso é ruim para o país. Não são números o que este relatório
nos traz, mas pessoas. Não podemos continuar com essa tragédia contra os
povos indígenas”.
Fonte: CPT
BNC Terra