Senadora Kátia Abreu |
Brasília - A
Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) é o principal
sindicato dos fazendeiros. Desde 2008 está sob o comando da senadora
Kátia Abreu, do Tocantins. Na quinta-feira 3, dois dias antes do prazo
final para quem quer disputar eleição em 2014, Kátia trocou de partido.
Deixou o PSD e agora pertence ao PMDB, do vice-presidente da República,
dos presidentes da Câmara e do Senado e do ministro da Agricultura.
A
mudança de ares da senadora coincide com as bodas de prata da atual
Constituição. Os 25 anos completam-se neste sábado 5. Na promulgação,
foi batizada de “cidadã”, graças a inéditos avanços sociais, como o voto
dos analfabetos e a saúde pública gratuita para todos. Há um tema, no
entanto, em que faltou cidadania: a reforma agrária. E o motivo pode ser
entendido no recente casamento de Kátia Abreu com o PMDB.
A
Constituição foi um atraso para os sem-terra – e portanto uma vitória
para os fazendeiros - ao consagrar uma visão mercadológica sobre o
assunto e estabelecer um procedimento engessado que dificulta e protela a
reforma. Adotou inclusive dispostivos que a ditadura militar havia
abandonado.
O
texto proíbe, por exemplo, desapropriar imóveis produtivos. Não importa
se a exploração da área beneficia só uma pessoa diretamente, o dono. O
Estado não poder invocar a democratização da terra para justificar uma
desapropriação em favor de um grupo maior de agricultores e suas
famílias.
A
indenização tem de ser paga pelo governo de forma “prévia” e a preço
“justo”. A parte que se refere a prédios e estradas construídos na
fazenda tem de ser liquidada em dinheiro. O decreto de desapropriação
assinado pelo presidente da República não garante a posse imediata do
terreno aos beneficiários. Tem de ser examinado pela Justiça, a quem
cabe a palavra final.
Pagar
de forma prévia, justa e em espécie torna a reforma agrária cara e
lenta, pois o governo não tem verba sobrando. Instituídas na
Constituição de 1946, as três regras foram extintas pelo regime militar,
que, entre outras razões golpistas, derrubou o presidente João Goulart
por reformas que ele planejava fazer, como a agrária. Em 1964, o ditador
Castelo Branco resolveu pagar desapropriação com título público. Em
1969, Costa e Silva decidiu parcelar e fixar um limite: o valor
declarado pelo dono na hora de pagar imposto, menor do que o valor de
mercado.
“Com
tal equipamento jurídico-constitucional”, escreveu José Gomes da Silva,
ex-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária e do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, “estava portanto o
Executivo devidamente aparelhado para desencadear uma mudança na
estrutura agrária brasileira, pendente apenas da indispensável decisão,
vontade e ação política”.
A
reflexão faz parte do livro Buraco Negro – A Reforma Agrária na
Constituinte, que o já falecido engenheiro agrônomo publicou em 1989. É
um relato de como a aliança entre conservadores e fazendeiros derrotou
os progressistas e pariu a Constituição nada cidadã para os sem-terra.
Os
trabalhadores rurais e seus aliados tentaram – e fracassaram – impedir
que a Carta privilegiasse a visão econômica. Entre outras coisas,
propunham indenizações parceladas. Que estas não seguissem valores de
mercado, pois uma desapropriação deveria ser vista como punição ao dono.
Que a posse pelo beneficiário fosse automática, sem decisão prévia da
Justiça, um poder que ajuda a protelar e encarecer a desapropriação. E
que propriedade produtiva não fosse blindada.
A
blindagem foi um dos momentos mais dramáticos da Assembléia Nacional
Constituinte, na opinião de Gomes da Silva, pai do atual diretor-geral
da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO),
José Graziano da Silva. Por uma margem apertada, os progressistas
ganharam a votação que permitiria atingir imóveis produtivos: 267 a 253.
Mas não levaram. Precisavam de 280 votos. “Estava sepultada a reforma
agrária no Brasil”, escreveu Gomes da Silva.
A
votação mínima para aprovar uma proposta não fazia parte das regras
originais da Constituinte. Surgiu depois. É obra do que ficou conhecido
como Centrão. O bloco juntou parlamentares aliados da ditadura, filiados
sobretudo a PDS e PFL, com parte do PMDB, que em tese era progressista
mas também tinha seus conservadores. O objetivo era segurar os
progressistas, que tinham mostrado força no início da Assembléia.
Graças
à manobra do Centrão, o primeiro texto de reforma agrária foi votado em
plenário sem que nenhum dos dois lados (conservadores e progressistas)
conseguisse 280 votos para bater o outro. Foi o único caso em toda a
Constituinte, o que revela como o assunto era polêmico. O projeto caiu
em um “buraco negro” - daí o nome do livro de Gomes da Silva –, exigindo
concessões de parte a parte, para ser aprovado.
A
artimanha do Centrão - juntar parlamentares governistas e
oposicionistas para fazer valer seus interesses individuais em Brasília -
extrapolou a Constituinte. Vem se reproduzindo até hoje no que o
filósofo e cientista político Marcos Nobre chama de “peemedebismo” no
livro Imobilismo em Movimento, lançado nesta sexta-feira 4.
O
PMDB, diz Nobre, representa uma massa de políticos que cuida dos
próprios negócios, sem um projeto para o Brasil. Foi assim sob FHC e
Lula, e é assim com Dilma Rousseff. É conservador e faz de tudo para
segurar avanços sociais, como a reforma agrária. O lugar perfeito para a
líder ruralista Kátia Abreu. “A ideia da reforma agrária, do ponto de
vista histórico, acabou”, escreveu ela em um artigo publicado em
fevereiro.
Não
é o que pensa o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que
lamenta que Dilma pareça concordar com a senadora. A gestão Dilma tem o
pior desempenho na reforma agrária em duas décadas. A presidenta
assinou só 80 decretos desapropriações, nenhum em 2013. No segundo
mandato de Lula, a média anual foi de 127.
Um
dos motivos usados pelo governo para justificar a lentidão é o preço
alto da terra. De 2001 a 2011, o valor do hactare subiu de 443 reais
para 1.967 reais. Se a Constituição não privilegiasse o a visão
mercadológica, a situação talvez fosse outra. Com Kátia Abreu e o
domínio do Congresso Nacional pelo peemedebismo, não há solução à vista.
Fonte: Carta Capital
BNC Brasil